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sumpserunt, ne sermonis quidem vernaculi memores, ac plerique facti sunt latini, et colonos acceperunt romanos; parumque abest quin omnino romani sint facti.

Casos. Todo o argumento tirado dos casos, reduzido á sua expressão verdadeira, consiste em que todas as nossas palavras são indeclinaveis, em quanto que o latim tem um pequeno numero de vocabulos desta natureza. Mas que tem esta circumstancia com a filiação da lingua? Uma palavra muda acaso de natureza, por ser ou não ser declinavel?

Transposição. Se o latim he uma lingua transpositiva, e o portuguez uma lingua analoga, nem por isso daqui póde tirar-se argumento contra a sua affinidade. Nós dizemos: Recebi as tuas cartas; e Cicero disse isto mesmo de tres maneiras, pois que em todas as tres fórmas se encontra nas suas obras: Accepi tuas litteras-Tuas litteras accepi-Litteras accepi tuas. ¿Por que rasão se ha de negar a filiação da lingua, só porque não póde usar senão de uma fórma?

Verbos. Em quanto á voz activa, não póde pôr-se em duvida que amo, as, at, amavi, amasti, amavit, amavero, is, it, são inteiramente similhantes á conjugação portugueza.-No que toca á voz passiva, os latinos dizião amatus sum ou fui, e nós dizemos como elles-fui ou tenho sido amado. He verdade que para alguns tempos tinhão uma terminação particular passiva, dizendo amor, amabar, eu sou amado, eu era amado; mas tambem dizião amatus sum, eu sou amado, amatus eram, eu era amado. Não he exclusiva da lingua portugueza a significação de coexistencia no estado actual do verbo estar. Os melhores authores dão a stare a significação do auxiliar esse; sto expectans siquid mihi imperent;―stal pectore fixum,—stant lumina flamâ, etc. -Tambem o verbo habere se encontra como auxiliar, por exemplo em Cicero: De Cæsare satis dictum habeo.

(N. B. Este ponto he muito bem tratado na «Refutação >> mas os leitores poderão consultar com proveito sobre elle, além de outras obras, a Litt. au moyen-âge de M. Villemain, 1.o vol. pag. 90, 91 e seguintes).

Adverbios.-Nem todos os adverbios latinos terminão em ter; assim, por exemplo, os latinos dizião juste, pulchre, e não juster, pulchreter. No Leal Conselheiro encontramos similhante por similhantemente; e a terminação adverbial em o ainda hoje he usada, pois que dizemos certo, claro, justo, prompto, por certamente, claramente, justamente, promptamente.-A termi

nação ter substituiu-se a de mente, ainda que seja de presumir que na sua origem fosse empregado este vocabulo, para designar o estado do espirito e da mente de cada um, com referencia à acção de que se tratava; pois que não póde negar-se que mente seja o ablativo de mens. Encontrão-se innumeros exemplos do emprego desta fórma adverbial nos melhores authores latinos: tu conditá mente teneto-sensit enim simulatá mente locutam, etc.

Comparativos. O numero dos comparativos em or na lingua portugueza ainda he grande, pois temos maior, menor, melhor, peor, superior, inferior, ulterior, exterior, citerior, etc. He porém certo que a nossa lingua não adoptou na generalidade esta fórma, e não será máo que os sabios a ampliem, tanto quanto a euphonia o permittir. Os latinos formavão os comparativos dos casos em i, doctus, docti, doctior, e nós não podiamos assim forma-los, porque não adoptámos os casos.-Ò ouvido devia resistir a que de sabio se fizesse sabior, de douto, doutior, além de que as vogaes finaes são de difficil pronunciação; por exemplo, o povo diz fadairo em logar de fadario. No latim havia muitos adjectivos que não tinhão nem comparativos, nem superlativos, por exemplos, patrius, legitimus, duplex, claudus, unicus, dispar, arduus, e outros, para os quaes os romanos se servião de magis e maxime ou valde, a fim de formarem os gráos de comparação, o que tambem muitas vezes praticavão com os adjectivos que tinhão comparativos e superlativos.-Povos grosseiros, devião pois adoptar o methodo mais simples, tanto mais quanto lhes era difficil saber quaes adjectivos tinhão comparativos e quaes não.

Superlativos.-Os superlativos em issimo não se encontrão nos escriptores do principio do seculo XV; he comtudo de presumir que já no tempo do Sr. D. Affonso III se usassem, pois que no Livro Velho das Linhagens se diz, fallando-se dos Godinhos, que descendem do nomelissimo sangue dos godos. Mas, pondo de parte estas indagações, ¿que valor tem o argumento de mais moderna ou mais antiga introducção?

Particulas. Muito haveriamos lucrado em adoptar todas as particulas latinas; mas que idéa podião ligar povos grosseiros a at, sed, quidem, enim, versus, etc., ¿que aliás não têem por si mesmas significação alguma, desacompanhadas das outras palavras, cujo valor não póde ser apreciado senão por um ouvido exercitado?-Se, por exemplo, não adoptárão nunc, porque a

nossa lingua não admitte palavras acabadas em c, adoptámos todavia agora por hac hora.-Logo não póde dizer-se que a lingua portugucza engeitou desdenhosamente as particulas latinas.

Terminações augmentativas e diminutivas.-Não podiamos adoptar as terminações dos augmentativos latinos, pela muito simples rasão de que os latinos não tinhão augmentativos. Tomámos porém delles muitas terminações dos diminutivos, e até os proprios diminutivos formula, libello, conventiculo, etc. Crêse que a terminação em inho e inha vem do latim illus, a, ud, e assim, que de lupillus fizemos lobinho, de mamilla maminha, de murmurillium murmurinho, etc.

Proverbios, ete.-Para que o argumento deduzido dos proverbios portuguezes fosse concludente, fôra mister saber-se que todos os proverbios latinos chegárão até nós; mas o contrario d'isso he que he certo. Os proverbios andão sómente na boca do vulgo, e fôra um contra-senso julgar dos proverbios latinos por Virgilio, Horacio, ou Tito Livio. Muitos proverbios temos tirados do latim: Anda o carro adiante dos bois, Carrus bovem trahit; na terra dos cegos o torto he rei, inter cæcos regnat strabus, etc. Não era possivel que conservassemos proverbios allusivos a factos particulares dos romanos, ou aos seus usos e costumes civís e religiosos, que nós não adoptámos; e vice-versa não podião os romanos ter os proverbios que alludem á nossa religião, aos nossos santos e ceremonias religiosas, taes como: Para a ressurreição dos Capuchos; Presumpção e agua benta, etc.; Ensinar o padre-nosso ao vigario, etc.;-nem tão pouco podião adoptar os relativos aos nossos jogos. Os rifões, proverbios, e anexins, como dependentes dos usos e habitos populares, são variaveis como elles; e não tendo a vida social dos romanos sido a mesma que a nossa, não he de estranhar que até nós não chegassem muitos dos seus rifões.

Artigos. Se valesse o argumento de que a lingua portugueza não he filha da latina porque não tem artigos, com muito mais rasão se poderia negar ao latim a sua procedencia do grego. A admissão dos artigos na lingua portugueza prova um aperfeiçoamento, mas não destroe a filiação.

(N. B. Supposto que na «Refutação» seja tratada magistralmente esta materia, julgamos todavia conveniente prevenir os leitores de que deve lêr-se o citado M. Villemain na Litt. au moyen-âge, pag. 88 e 89 vol. 1.)

Interjeições. Á excepção de alguns gritos naturaes, indi

cativos da alegria, da dôr, do temor, todas as mais interjeições são arbitrarias ou de convenção; porque aliás serião similhantes em todas as linguas.

Onomatopéas.-As onomatopéas não são uniformes em todas as linguas. Nós dizemos, por exemplo, truz-truz o som de bater á porta, os francezes dizem pan-pan; nós designamos por catrapoz o som do galope do cavallo, e elles dizem patapan.

Vocabulos da infancia.-Se ha palavras de convenção, nenhumas o são tanto como estas, porque não são senão um arremedo das palavras usuaes da lingua do paiz, que se estropião de proposito para as tornar de mais facil pronunciação aos meninos. As palavras amo, boca, beijo, bico, teta, mano, etc., citadas como pertencentes á infancia, não são senão palavras geraes e communs da lingua. O que se chamou numerosissima familia reduz-se, quando muito, a uma duzia de vocabulos. (Vej. o longo e espirituoso desenvolvimento deste resumo na «Refutação»).

Vocabulos derivados ou compostos de palavras latinas. Os latinos tinhão a palavra virtus, mas não tinhão virtuosus, nem virtuose, de sorte que para dizerem: Tu és virtuoso, dizião -Tu es virtute præditus. Na decadencia da lingua suppriu-se esta falta, fazendo-se de, virtus, virtuosus, e nós adoptámos virtuoso, virtuosamente, desvirtuar. Sendo pois tão legitima esta origem, tão incontestavel, como he possivel negar-lhe a sua procedencia do latim? Poderião citar-se innumeros outros exemplos; basta porém observar que, se os vocabulos são derivados de uma palavra latina, segundo o genio da nossa lingua, não se póde recusar a essa raiz a faculdade de tomar todas as terminações que a nossa lingua lhe possa dar.

Vocabulos tomados do grego e do celtico.-Admittida a exigencia de se tirarem da lista dos vocabulos latinos aquelles que os romanos tomárão dos gregos, não viria a palavra Deos da latina Deus, por isso que os latinos a tomárão de Theos, ou de Dios, genitivo de Zeys. Ainda aquella exigencia poderia ter logar a respeito das palavras technicas e scientificas, porque taes termos são universaes; mas não póde ser extensiva aos que tomámos immediatamente do latim e como latinos, sem nos informarmos da sua origem. Igual exigencia se apresenta a respeito do celtico, justificando-a com o exemplo da palavra donzel, que pretendem derivar de dum, dom, em vez de domicellus; mas he certo que donzel vem de dono, syncopado de dominus, como póde

vèr-se em Denina, e em Romani (Dizzionario de sinonimi italiani) que diz assim: Donzello é il diminutivo di donno. Questo nome, equivalente al latino Dominus, significava anticamente signore; e percio il suo diminutivo donzello indicava un giovin signore. Não se póde asseverar que recebemos directamente dos gregos certos vocabulos que se não encontrão no latim, porque não temos todos os authores latinos para sabermos se os usárão. ¿Será, porém, verdade que os gregos, em tempos antiquissimos, fundárão colonias na Galliza e na Lusitania, e nos deixárão esses termos a que acabamos de alludir? Não ha fundamento para assim o crer. Donde nos virião pois esses vocabulos gregos que temos, e se não encontrão no latim? Ou do latim vulgar, sem terem sido empregados pelos escriptores, o que he plausivel, visto como são pela maior parte populares, v. g. patao, apito, lasca, lamuria, naco, etc., ou dos barbaros, em consequencia da communicação que por muitos seculos tiverão com os gregos do Baixo Imperio. O argumento da troca do b pelo v não tem força. Muitos povos fazem esta troca, principalmente os de origem celtica; em alguns dialectos não ha mesmo a letra v.

Vocabulos verdadeiramente latinos, mas introduzidos muito modernamente no portuguez.-São os escriptores que aperfeiçôão as linguas, e este difficil trabalho he obra de longos annos, e de continuas acquisições. Dando, porém, de barato que os escriptores do seculo XVI introduzissem 300 a 500 palavras latinas no portuguez... que he isto, em comparação de 30 a 40 mil, que tantas temos do latim?

Temos extractado o que de mais substancial encontrámos na «< Memoria» e na «Refutação. » A concisão era o nosso primeiro dever, porque d'outra sorte houveramos copiado, quando só queriamos fazer a resenha dos argumentos dos dous contendores. Escapárão pois bastantes considerações, e pontos de doutrina, que muito interessarião aos curiosos; promettemos, porém, supprir esta falta nos paragraphos que havemos de consagrar ao exame das questões ethnographicas, que se enlação com este assumpto.

Antes, porém, de passarmos adiante, temos por conforme á imparcialidade, que deve caracterisar o nosso trabalho,—1.° dar uma breve ideia dos argumentos, com que um author francez impugna a filiação latina da sua lingua;-2.° dar uma rapida noticia dos manuscriptos de Antonio Ribeiro dos Santos,

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